2 de setembro de 2011

O fenómeno das tampas que dão cadeiras de rodas

Ó mãe, tu não deites as tampas fora! Olha que há pessoas que precisam de cadeiras de rodas!"

O pedido é mais que um pedido. É uma súplica. Uma exigência feita por vezes de modo dramático e teatral. E espalhou-se por todo o País. Três anos depois de iniciado o projecto de converter tampas de plástico em cadeiras de rodas, há milhares de crianças e jovens que acumulam tampas como quem colecciona cromos. A diferença está no propósito. Os miúdos não juntam tampas para engrossar uma qualquer caderneta. Os miúdos sabem que a sua recolha ajuda a dar material ortopédico a quem precisa.

Tudo começou com uma dúzia ou duas de tampas. E uma enfermeira ligada aos cuidados continuados cheia de ganas de ajudar os outros, sobretudo por conhecer de cor as necessidades nunca completamente satisfeitas dos doentes. O seu nome é Guadalupe Jacinto. E o começo do projecto que despertou miúdos e graúdos para a solidariedade foi tão simples quanto isto: "Estava a tirar a licenciatura e levava sempre comida de casa: a garrafinha do iogurte, a garrafa de água... Como não conseguia andar com o lixo todo para reciclar, guardava ao menos as tampas." Foi assim que na mala da enfermeira começaram a morar algumas dezenas de pequenos círculos de plástico: "Um dia pus-me a olhar para as tampas e pensei: isto deve dar dinheiro. E se eu conseguisse juntar muitas, muitas tampas e depois as vendesse, fazendo reverter o dinheiro para conseguir cadeiras de rodas?"

A ideia nasceu em 2003. Sem saber se daria certo, Guadalupe Jacinto deitou mãos à obra. Falou com as colegas do Hospital Garcia de Orta, em Almada, e pediu-lhes que começassem a guardar tampas. Depois, começou a contactar empresas de recolha de resíduos que aderissem à ideia. E conseguiu. A Amarsul foi o primeiro sistema de recolha de resíduos sólidos urbanos a aderir ao projecto: "Ficou combinado que eles receberiam as tampas, enviariam para os recicladores e reservariam o dinheiro respectivo para comprar material ortopédico." A enfermeira Guadalupe Jacinto determinou, desde o início, que o dinheiro nunca passaria por si. "Não queria que houvesse qualquer mal-entendido sobre as minhas intenções."

Pouco tempo depois de ter lançado a ideia (e espalhado alguns cartazes apenas na Margem Sul, onde vive), Guadalupe foi surpreendida pela proporção que o projecto tinha tomado: "Um dia, não muito depois de ter começado isto, parei numa bomba de gasolina em Santarém e vi os meus cartazes afixados. Depois, soube que já tinham chegado às Ilhas. E que alguns professores, a título individual, tinham colocado os cartazes nas escolas e promoviam concursos, para ver qual a turma que conseguia acumular mais tampas."



"Tou sim, é da Tampa Amiga?"

Estava lançado o fenómeno. Crianças pequenas, jovens e adultos começaram a passar a palavra. Aqui e ali começou a falar-se da estranha recolha. Muitos pais ficaram a saber da iniciativa pelos insistentes pedidos dos filhos: "Guarda as tampas!"

Consciente de que a criação ultrapassara o criador e incapaz de dar resposta a todos os que a procuravam no Hospital Garcia de Orta, Guadalupe Jacinto decidiu criar a Associação Tampa Amiga. A página na Internet (www.tampinhas.org), dava conta de todos os passos do processo, bem como o nome das entidades que, sucessivamente, se foram aliando à ideia (escolas, juntas de freguesia, bombeiros, empresas particulares, etc.) e se foram oferecendo para receber e armazenar as tampas, transportando-as de seguida para os sistemas de recolha de resíduos aderentes. Hoje, já são 243 os locais de entrega, por todo o país.

Além destas informações, Guadalupe Jacinto introduziu no site o seu número de telemóvel, para que os interessados pudessem ver esclarecidas as suas dúvidas. Arrependeu-se logo de seguida: "Não imagina o que foi. Eu não conseguia trabalhar! As chamadas eram tantas que tive de desligar o telemóvel." E é assim que se mantém, desligado, o telefone cujo número aparece na Internet: "Se eu o ligasse agora, ficava surpreendida porque a nossa conversa acabava de imediato. As pessoas aderiram de tal modo a esta iniciativa que eu chego a sentir-me frustrada por não conseguir dar vazão a todas as solicitações."



Tampas chegam pelo correio

Em 2004, a primeira campanha conseguiu recolher 7,8 toneladas de tampas, que renderam 16 cadeiras de rodas e uma cama articulada. Este ano já recolheram 8,12 toneladas, entregaram mais quatro cadeiras e estão na iminência de fazer várias entregas. Mas a ideia de Guadalupe contagiou mais gente e fugiu-lhe do controlo. Há material ortopédico a ser entregue directamente pelos sistemas de recolha de resíduos. De modo que nem ela já sabe ao certo quantas pessoas foram beneficiadas.

Ainda assim, continua a ser procurada como se fosse uma figura famosa. Há quem vá ao Hospital Garcia de Orta à procura da mentora do projecto, com sacos de tampas para lhe entregar ou com pedidos desesperados de material ortopédico: "Entram por ali, vêm ter comigo e dizem: ó senhora enfermeira, dê-me uma cadeirinha de rodas, que eu preciso tanto!"
O conselho que Guadalupe dá a quem precisa de material ortopédico é que se associe a uma instituição: "Nós preferimos entregar o material às instituições. Porque sabemos que, assim, quando a pessoa já não precisar, a instituição canaliza esse material para outra necessitada. De contrário, não sabemos que uso é dado às cadeiras de rodas quando os doentes, por morte ou por cura, deixam de precisar delas."

Para conseguir dar resposta à "loucura" das tampas, a Associação Tampa Amiga precisava de uma sede, de mais associados e de voluntários: "Sem associados a associação não pode andar. Há muita gente para ajudar, muitos doentes que precisam e eu, sinceramente, sinto-me perdida. Faço o que posso, mas tenho o meu trabalho e o meu filho e outro a caminho." A enfermeira até já pediu à Câmara Municipal do Seixal e à de Almada que cedesse um espaço com uma linha telefónic, "mas até agora não obtivemos resposta".

A febre das tampas é tão grande que já começou a dar dores de cabeça. Ana Loureiro, directora de Comunicação, Imagem e Documentação da Valorsul (um sistema de recolha de resíduos, em Lisboa), elogia a ideia mas aponta alguns problemas: "Às vezes recebemos toneladas de tampas e nem sequer sabemos se o reciclador as vai comprar. As tampas são muito pequenas e não são feitas de um material só. Isso, do ponto de vista da reciclagem, é complicado." Além disso, explica Ana Loureiro, o valor que se tira das tampas é ridículo: "Uma carga de oito toneladas dará uns 5000 euros. Consegue imaginar quantas tampas são precisas para chegar às oito toneladas?"

Mas as dores de cabeça não se ficam por aqui: "Chegam-me tampas de todas as maneiras. Até por correio as recebo! E depois há pessoas que exigem que as cadeiras de rodas vão para elas, porque precisam mais e porque entregaram muitas tampas. E ainda há quem guarde a tampa e deixe a garrafa no chão."

Para combater o fenómeno, que superou qualquer expectativa, a Valorsul está a preparar uma campanha que visa atribuir dinheiro para causas sociais, não em troca de tampas, mas sim de uma reciclagem feita de forma correcta.

in site "DN" de 15 Abril 2006